eu não tenho muitas memórias da minha infância.
pra ser sincera, a primeira década e meia da minha vida parece ter sido um único dia. eu ia pra escola, fazia as minhas tarefas de casa e brincava no meu quarto, sozinha. às 16h, eu me sentava na frente da TV pra ver os meus desenhos favoritos por exatamente uma hora (era o tempo permitido, lá em casa) antes de voltar pras minhas brincadeiras.
engraçado que, a primeira vez que eu escrevei o parágrafo acima, a vontade foi de terminar a frase com “antes de voltar pras minhas tarefas infantis”, o que diz muito sobre a forma como eu vejo a minha infância.
o conceito de ter vivido um único dia me acompanhou por muito tempo e eu lembro que um dos motivos pelos quais escolhi o jornalismo e desisti de vez do direito (que eu nunca deveria nem ter cogitado, por sinal) era que eu “não queria passar o resto da vida sentada num escritório”.
lembro de falar exatamente essa frase pra uma médica pediatra, amiga da família, que vira e mexe quebrava o galho pra minha mãe e ajudava a gente com questões mais emocionais.
é engraçado que, quando entrei na faculdade, meu sonho era ser correspondente de guerra.
juro pra você.
segui por um caminho completamente diferente, claro, e, apesar de respeitar muito os verdadeiros correspondentes de guerra, percebi que essa área não era pra mim.
o jornalismo me deixou bastante tempo sentada num escritório.
se não nas redações nas quais trabalhei, em casa, apurando matérias e fazendo pesquisa de trás de uma tela de computador, com um telefone, um email e (ainda) um sonho.
eu sou muito grata pela minha carreira, sabe, e mais ainda pela minha profissão.
mas depois que eu mudei pro Canadá a história do “viver um único dia” bateu com força, porque a expectativa era que eu seria outra pessoa depois que mudasse pra cá e os meus dias seriam completamente diferentes uns dos outros.
bem…
a expectativa nunca corresponde à realidade, não é mesmo?
o meu processo, agora, tem sido o de olhar novamente pros meus dias não buscando as falhas e o pânico de chegar no fim da vida pensando “meu deus eu vivi um dia só, foi tudo igual!!!!”, mas desistindo das minhas imaginações ingênuas e buscando encarar a realidade com coragem.
eu sou adulta, afinal.
(pelo menos, eu acho.)
olhando pra desistência que dói
não sei de “desistência” ou “decepção” define melhor a introdução dessa newsletter, mas quando pensei sobre o tema pra esse post eu tava num misto de desesperança com falta de motivação.
eu tava pensando em largar a escrita também.
veja, eu devo passar por esse ciclo pelo menos uma vez por ano. “chega, eu não aguento mais!”, brado aos céus antes de, mais uma vez, baixar a cabeça e voltar pros meus arquivos do docs e abas no Notion com textos inacabados e ideias que eu quero desenvolver.
calhou também eu ter parado pra ler, no meio do mês passado, essa newsletter da
e, pronto!, tava alugado o triplex mental que só conseguia pensar em desistência.é curioso como desistir de alguma coisa parece o tipo de pesadelo que ninguém quer viver na realidade (“o que as pessoas vão pensar de mim??”), sendo que ele é tão comum.
quando a gente olha por uma perspectiva macro, consegue perceber com facilidade que a desistência é constante e bastante frequente. por exemplo: esse estudo aqui mostra que 55% dos alunos que ingressam no ensino superior, no Brasil, desistem do curso no meio do caminho. tem muita complicação que explica essa história, de baixa renda e dificuldade pra pagar as mensalidades à gaps de conhecimento que dificultam a vivência de alunos vindos de escolas públicas na universidade.
e, aí, a gente pode ir também pra outro lado da moeda, literalmente. diz essa pesquisa que a cada 10 lojas abertas no Brasil, 6 fecham as portas. uma desistência bastante literal, porque essas lojas deixam de existir no mundo físico.
‘nossa, mas porque você tá falando de ensino superior e fechamento de empresas, maki?’
porque a desistência aparece de muitas formas, mas sinto que, no fundo, têm sempre a mesma base: um sonho. que seja cursar uma faculdade, abrir o próprio negócio, escrever um livro, morar na casa de campo perfeita… a gente sonha e cria expectativas e faz o que pode pra tirar aquele sonho do papel, só pra perceber que tem alguma força maior no meio do caminho que faz a gente recalcular a rota.
um filho não planejado. uma pessoa querida que ficou doente. uma tragédia ambiental. ou só a pura necessidade de sobreviver, que assassina qualquer sonho por um bem maior.
cada um sabe dos seus motivos e do que a sua realidade pede.
essa reflexão toda me levou a pensar também sobre priorização e autoestima. muitas vezes, a gente desiste por um motivo que parte ainda mais o meu coração: a crença de que a gente não tem capacidade de “chegar lá”, onde quer que o “lá” seja.
perguntei pra comunidade mar aberto, no chat, se eles já tiveram que desistir de alguma coisa e como foi esse processo. teve de profissão à podcast à curso de Photoshop e Illustrator, sempre com a ideia de que “não sou bom o suficiente” por trás.
some-se a isso também as responsabilidades da vida adulta e a nossa necessidade de priorizar o que dá dinheiro - ele é importante, afinal de contas -, e também aquela pressão maluca de que todo hobby, em algum momento, precisa ser monetizado.
o terror de todo criativo, né?
ressignificando o desistir
tenho tentado olhar pra desistência com outros olhos. me vem na mente uma frase do filme “Orgulho e Preconceito”, de 2005, quando Jane Bennet diz pro Mr. Bingley: “eu gostaria de ler mais, mas parece sempre existir tantas outras coisas a fazer!”
o “tantas outras coisas a fazer” me soa como um sinal dos tempos, porque se nos anos 1800 Jane achava que tinha coisa demais pra engajar num dia, imagina agora, quando a gente fica - com frequência, diga-se de passagem -, paralisado pela quantidade insana de coisas pra assistir num streaming da vida.
o paradoxo da escolha é real. essa teoria, desenvolvida pelo escritor barry schwartz prova que, ao contrário do senso comum, quanto mais possibilidades de escolha temos, mais infelizes ficamos, porque nunca estamos satisfeitos com a nossa escolha.
a gente sempre fica com a pulguinha atrás da orelha dizendo “e se eu tivesse escolhido a outra opção?”.
tá, mas como isso se aplica no contexto da desistência? a meu ver, pelo mesmo motivo. a gente sempre tem tantas coisas pra fazer, tantas ideias, tantas opções - e a influência não ajuda, sempre tem um novo hobby explodindo nas redes sociais (já comprou seu livro de colorir bobbie goods?) - que fica difícil a gente bancar a própria escolha.
ouvi, há alguns dias, uma amiga me dizendo que eu tinha dificuldades em priorizar as coisas, que tava sempre querendo fazer tudo ao mesmo tempo e isso minava as minhas possibilidades de sucesso. é uma daquelas verdades difíceis de ouvir, mas sei que, no fundo, ela tem razão.
na insegurança de escolher certo, fazer direito, fazer melhor, eu me boto em dúvida e acabo não fazendo coisa alguma. desisto de aprender a desenhar porque não faço uma ilustração maravilhosa logo de cara. deixo meu booknook montado pela metade porque “tenho coisa mais importante pra fazer” (maratonar séries que já vi um milhão de vezes). penso em parar de escrever porque não tô vivendo só da escrita criativa.
liz gilbert me daria um tapa se lesse esse parágrafo, tenho certeza.
e o segundo paradoxo, o da necessidade vs. prazer, também é um fator. desisto porque não sou boa e porque não paga as minhas contas. e a alegria que poderia encontrar num hobby é perdida em meio as minhas dúvidas.
no fim das contas, é sobre bancar as escolhas e dar tempo pra evolução acontecer naturalmente, curtindo cada passo do caminho. “a vida presta”, diz fernanda torres, e não só quando a gente recebe o prêmio. a validação externa pouco acrescenta no nosso bem-estar, né?
me parece mais interessante, então, buscar o tal autoconhecimento pra que essas escolhas (de fazer um hobby, mudar de profissão, começar um projeto, abrir uma empresa, que seja) estejam mais alinhadas com quem a gente é.
porque, aí, se a coisa desandar no meio do caminho, se a gente mudar de ideia ou só perceber que aquilo não faz mais sentido, a gente deixa de lado sem pensar duas vezes. e a tristeza até pode dar o ar da graça, mas a sensação de “pelo menos eu tentei” me parece melhor e mais interessante.
um parênteses
em “Siga em Frente”, Austin Kleon fala como “todos os dias são o dia da marmota”, e que viver dias iguais não é uma maldição, como eu pensava, mas uma benção.
ah, se você não sabe, aí vai uma curiosidade: a frase ‘dia da marmota’ se popularizou com o filme “Feitiço do Tempo”, um filme de 1993 em que o protagonista, interpretado por Bill Murray, é um meteorologista que fica preso no dia 2 de fevereiro - conhecido como o dia da marmota.
ele acorda, de novo e de novo, no mesmo dia, em que acontecem sempre as mesmas coisas, até que entende o que precisa fazer pra sair do loop. o Austin usa essa analogia (que é muito boa) como um convite pra gente olhar pra essa repetição de forma diferente.
“a única coisa que podemos controlar é com o que passamos os nossos dias. no que trabalhamos e se trabalhamos duro nisso. […] faça de conta que você está estrelando a sua própria versão do filme ‘Feitiço do Tempo’: o ontem acabou, o amanhã pode não vir nunca, só existe o hoje e o que você pode fazer com ele.”
nesse sentido, desistir não é um problema, só o passo final de um dia pro outro. o peso da decepção, eu sinto, tem mais relação com os julgamentos que a gente tem sobre a nossa capacidade do que qualquer outra coisa.
o bom dos hobbies é que eles sempre podem voltar a fazer parte da sua rotina amanhã. você sempre pode começar o curso da faculdade de novo. abrir uma empresa não é tão difícil. e eu sei que tem questões sócio-econômicas nesse meio que complicam as coisas.
mas a gente pode considerar a desistência, talvez, como um interlúdio: aquela pausa em que o tempo parece suspender, mas a vida continua acontecendo e, uma hora ou outra, se fizer sentido ou não, você retoma a música.
baú de referências
referências, conteúdos e links legais pra gente aprofundar a conversa.
um livro: “Essencialismo”*, Greg McKeown. eu tô pra reler esse livro há um tempo, mas lembro de ter ficado impressiona com a visão do Greg sobre preencher a vida com aquilo que é essencial pra você e não pros outros. o que torna o ato de desistir ainda mais bonito, afinal, você só tá deixando de lado aquilo que não faz sentido e isso não é ruim, mas libertador.
um filme: “Dias Perfeitos” (Prime). eu não tenho o que dizer sobre esse filme. mas se você não assistiu e se identificou com o que narrei no começo dessa newsletter, pare tudo e veja agora. mas pega os lencinhos, tá? é do tipo que faz a gente chorar feio e passar uns 3 dias repensando todas as escolhas de vida.
um podcast: desistir: será que hora de jogar a toalha?, mamilos. eu amo o mamilos. é aquele tipo de podcast de altíssima qualidade que dá gosto de ouvir, sabe? e esse episódio me pegou de jeito justamente porque fala sobre o tema que me levou a escrever essa newsletter.
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esse mês, na newsletter mar aberto
bora de agenda com os temas do mês?
13/03: editoria ‘caneta nervosa’ → três lições sobre voltar a escrever diários consistentemente.
20/03: editoria ‘manual da criadora’ → encontrando o extraordinário no mundano.
27/03: editoria ‘produtiva, sim. perfeita, não’ → os significados perdidos por trás do scroll infinito.
a leitura (voluntariamente) coletiva está pausada este mês enquanto repenso o formato pra melhorar essa experiência pra todo mundo. mas vale lembrar que tanto ela quanto os demais posts fazem parte da assinatura mensal (ou anual) da newsletter. clica aqui se você quiser saber mais.
esse post levou nove dias pra ficar pronto. entre a leitura do livro do Austin, a pesquisa e o primeiro rascunho, foram dias intensos. principalmente por conta do meu tormento interno de fevereiro, risos. também tinha planejado contar com a entrevista de uma pessoa super legal pra esse texto, mas a vida tinha outros planos e as respostas não chegaram a tempo.
taí uma desistência que o jornalismo me ensinou a lidar com leveza.
conta pra mim uma desistência pessoal que você viveu no último mês?
é isso por hoje.
se cuida e fica bem,
Muito necessário o seu texto 💜 eu desisti da minha carreira de cientista depois de 9 atuando na pesquisa acadêmica e com um doutorado finalizado. Para mim a parte mais difícil foi o interlúdio, como vc disse, pq eu não sabia se a transição de carreira daria certo ou não. Mas eu estava muito certa da minha decisão. E hoje estou aqui, do outro lado da desistência, mais feliz e melhor remunerada hahaha. Continuar em um caminho que não faz mais sentido só porque vc já está nele há muito tempo chega a ser loucura, na minha opinião...
Tenho um texto que escrevo que a gente não aprendeu a desistir. Levei um bom tempo (com anos de terapia) para entender que desistir não é fracassar. É deixar ir aquilo que não faz mais sentido. Ainda dói quando preciso abrir mão de projetos, ideias e pessoas. Porém, quando deixo ir, fico mais leve, que é meu objetivo de vida.
Se quiser ler o texto sobre desistir:
https://pritescaro.substack.com/p/47-quem-foi-criado-para-desistir