não fazer nada tem me devolvido pra mim
cultivando o tédio como um hábito criativo todos os dias
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foi coisa de cinco minutos.
o bar tava escuro e a música, meio alta. a comida tava ótima e o meu drink sem álcool também. mas depois de uma hora de conversa, minha amiga decidiu ir no banheiro.
meu primeiro impulso foi pegar o celular e abrir o Instagram.
‘não! não preciso olhar isso agora, num vai ter nada de novo por lá.’
foi uma batalha hercúlea travada em silêncio, mas venci e deixei o eletrônico na bolsa.
a vontade de scrollar me dava coceira nos dedos, mas me forcei a esperar o retorno da minha companheira de rolê. olhei em volta pras luzes penduradas no teto, um casal claramente em um primeiro encontro numa mesa de canto, alguns amigos falando alto na mesinha do lado de fora.
percebi que tava cansada, o que não fazia sentido porque eu não tinha saído de casa aquele dia. por outro lado, fiz uma série de tarefas no trabalho que exigiram muito da minha cabeça. o cansaço, mais do que físico, era mental.
o que eu buscava, então, não era tanto saber as novidades do mundo por stories, vídeos curtíssimos e textos de até 240 caracteres.
eu queria era desassociar. e o ‘ver as novidades no celular’ era uma forma de pensar nos outros e não em mim, me entupir de informação alheia pra não pensar nas minhas próprias.
me mantive firme na escolha, respirei fundo, fechei os olhos por um segundo e me permiti ficar entediada e deixar a mente vagar pro que ela queria.
quem sabe assim ela descansa.
‘desculpa a demora, o banheiro fica mó longe’, disse minha amiga, quando voltou.
‘sem problemas, eu tava aqui de boas.’
e tava mesmo. voltei pra casa mais descansada (e vitoriosa) do que quando saí.
o tédio como descanso
tem muitos (muuuuitos) anos, eu acompanhava uma youtuber super novinha chamada Beatrice. na época, ela tava num gap year - aquele ano sem estudos que os estudantes norte-americanos às vezes tiram antes de começar a faculdade. Beatrice fala muito sobre produtividade e construção de hábitos e viralizou por conta dos vídeos ensinando como ela estudava coreano.
(o k-pop tava começando a explodir do lado de cá do mundo, como você pode imaginar.)
num dos vários vídeos dela que eu assisti, ela falava sobre ‘treinar fazer nada’. basicamente, ela colocava um timer de 10 minutos no relógio, sentava na cama e ali ficava. sem telas, sem livros, sem qualquer distração. ela dizia que tava ‘praticando lidar com o tédio’ e o quanto isso era importante pra criatividade e pra saúde mental dela.
coloquei na minha listinha de coisas a fazer que eu deveria tentar também. fazia sentido e parecia interessante. antes da pandemia, aquilo parecia só mais um desafio que eu gostaria de experimentar por alguns dias antes de deixar de lado.
corte seco, é 2024 e a dependência das telas e da tecnologia atingiu patamares nunca antes vistos. no Substack, só se fala sobre o sonho da desconexão e discutem-se os efeitos da tecnologia no nosso cérebro.
‘mas o que a gente faz quando tá offline?’
eu amo a premissa de que a tecnologia foi desenvolvida pra nos dar mais tempo, mas pouca gente fala sobre o quê, exatamente, a gente vai fazer com esse tempo extra.
até porque a dependência tecnológica é tão séria que a gente passa o tempo livre na frente de outras telas. se não é o computador, é a TV, se não é a TV é o tablet. se não é o tablet, é o video game.
ou você nunca se pegou assistindo uma série no seu horário de descanso enquanto rolava o feed do TikTok ao mesmo tempo?
e, longe de ser uma crítica a essas tecnologias, eu sinto que a provocação é necessária, porque a gente desaprendeu a viver o tédio.
Jenny Odell, autora de “Resista: Não Faça Nada”, fala sobre a relação da tecnologia e a nossa desconexão com o ambiente em que vivemos. se você mora numa cidade grande, pense no seu vizinho de porta, por exemplo. o quanto você sabe sobre aquela pessoa? o quanto ela sabe de você?
tá, mas o que isso tem a ver com o tédio?
tudo. porque o nosso grau de desconexão é muito mais profundo e vai além de não sabermos o nome dos nossos vizinhos.
tem relação com o quanto a gente evita o contato com os nossos próprios pensamentos também.
se não tivesse me forçado a prestar atenção, naquela noite no bar, provavelmente eu não notaria que estava cansada e que precisava de um respiro. talvez eu não teria cuidado de mim da maneira como eu precisava ser cuidada naquele momento: diminuindo estímulos, limitando o fluxo de informação e dando espaço pra minha mente se recuperar.
“o desconforto do tédio é o mesmo desconforto de olhar no espelho. eu acredito que ao fugir do tédio, a gente tá fugindo da gente mesma. porque a gente prefere se dar um choque do que saber o que passa na nossa própria cabeça.” - lela brandão
já ouvi muita gente (mais recentemente,
), dizendo que o ócio é revolucionário. e eu preciso concordar. encontrar conforto no desconfortável tem gerado mudanças internas muito maiores do que eu imaginava ser possível.comentei, outro dia, que tenho evitado a rotina multitarefas, mas a verdade é que eu perdi a capacidade de fazer duas coisas ao mesmo tempo.
ouvir música enquanto cozinho virou um incômodo. chega uma hora que é só barulho bagunçando a minha mente.
escutar um podcast enquanto passeio com o meu cachorro me deixa agitada, o que deixa o Michael agitado, o que significa que o passeio é mais estressante do que relaxante.
abrir o TikTok enquanto tô no sofá descansando não me relaxa, mas me sobrecarrega. entre um vídeo engraçadinho e outro, o que eu sinto é a sobrecarga de informações e opiniões.
a gente se acostumou a estar estimulado o tempo inteiro.
quer um exemplo?
domingo fui ao meu café favorito pra escrever. do meu lado, tinham duas garotas sentadas uma de frente pra outra, cada qual com o seu laptop. a menina do meu lado da mesa tava com a tela dividida: de um lado, um episódio de The Office passando na Netflix, do outro, o que parecia ser algum simulado de prova ou apresentação de exercícios de física (foi o que a minha interpretação xoxa conseguiu entender do que tava acontecendo).
ela tava de fone de ouvido e com o celular na mão, alternando entre os stories do Instagram e o TikTok.
acredito, com todas as minhas forças, que ela fez absolutamente nada de produtivo naquele momento.
(e, diga-se de passagem, ela ficou nesse esquema por, pelo menos, duas horas - o tempo que fiquei no café. fui embora e ela seguiu lá.)
o tédio como hábito
talvez você também se sinta meio assim, num agito sem explicação, em que você precisa fazer alguma coisa o tempo inteiro. as abas do navegador da minha mente não fechavam nunca e eu tava precisando fazer alguma coisa antes de enlouquecer por completo.
então, tenho treinado o tédio como um hábito.
tô começando pequeno e bem do jeito que a Beatrice falava nos seus vídeos. numa pausa do trabalho, vou até a janela e fico olhando a vida acontecendo lá fora, em silêncio.
quando volto de um passeio com o Michael, boto ele na caminha pra descansar e descanso junto, esperando quieta e longe do celular enquanto nós dois nos recuperamos da caminhada.
quando tô com alguém e essa pessoa se ausenta por algum motivo, travo a batalha mental pra evitar pegar no celular.
mais do que tudo isso, porém, tenho praticado não sentir medo das coisas que eu penso e identificar os sinais do estresse e do cansaço. tenho aprendido, aos poucos, que pensamentos não representam a verdade das coisas, e que tapar o buraco dos meus sentimentos com distrações rápidas e overdose de informações não me faz sentir mais feliz.
vez ou outra, me vejo cedendo a pressão do contexto e mexendo no meu celular só porque tá todo mundo fazendo o mesmo. de fim de semana, ainda passo tempo livre de mais entre um scroll e outro, evitando lidar comigo mesma.
eu falo muito do celular e das redes sociais porque esses são os meus nêmesis criativos. mas poderia ser qualquer coisa, música o tempo inteiro, vídeos no youtube, um jogo de videogame, livros ou sexo, drogas e rock’n ‘roll como diria a velha guarda.
distrações existem aos montes no mundo e atendem a todos os gostos.
ainda julgo ser cedo demais pra colher os frutos da prática, mas se a minha aversão adquirida a fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo é qualquer indicativo, acho que tô no caminho certo.
(as vozes da minha cabeça tão mais caladinhas esses dias também, o que é sempre bom.)
é isso por hoje,
se cuida e fica bem.
Você surgiu no momento em que mais tenho procurado desacelerar ... Todo texto, um novo ensinamento. E quando a Mariana de cima compartilhar o app, passa o nome pra gente, se puder ? Obrigada ! 😘
Eu vou literalmente fazer o esquema de por alarme pra não fazer nada!!! Sou péssima nisso e quero aprender. Aliás. preciso te mostrar um app que eu descobri pra lidar com esse vício de abrir Instagram sem nem prestar atenção. Vc vai curtir!