toda leitura é política. e ponto final.
a gente precisa *mesmo* ter essa conversa e aprender como ser um leitor melhor
em 2007, aos 20 anos, realizei um sonho: fiz um mochilão de um mês pela Europa com uma amiga. foi a minha primeira viagem internacional sozinha e lembro daquele mês com um carinho absurdo, mesmo quando penso em todos os perrengues que vivi naquelas semanas de verão europeu.
dos seis países que visitei, o que mais me impressionou - e que eu estava mais empolgada pra conhecer - foi a Alemanha. Berlim é uma cidade que respira história. cada canto é um marco importante pro último século.
eu, que sempre fui maluca por história - em especial os períodos de guerra, que sempre quis entender a fundo porque aconteceram -, fiquei absolutamente impressionada com tudo o que eu vi.
mas de todos os passeios, memoriais e museus que visitei, é um quadrado de vidro no chão que nunca me saiu da cabeça.
explico: existe na Bebelplatz um monumento criado pelo escultor israelense Micha Ullman chamado ‘The Empy Library’. inaugurado em 1995, esse monumento é dedicado à queima de livros promovida pelos oficiais nazistas em 10 de maio de 1933, alguns anos antes da Segunda Guerra Mundial de fato estourar na Europa.
naquele fatídico dia, professores, estudantes e oficiais alinhados às políticas nazistas queimaram mais de 20 mil livros de autores judeus, liberais, comunistas e críticos sociais - tudo sob o olhar do público. nem as obras de Freud e Nietzsche se salvaram desse evento.
pode passar despercebido, sabe, esse monumento. é um quadrado de vidro de 530x706 centímetros que cobre as prateleiras vazias de uma biblioteca subterrânea, bem no meio da praça. ele segue o conceito de ‘forma negativa’ cunhado pelo historiador James E. Young, de maneira que entre as pedras do chão da praça, há um vazio.
lembro da guia explicar que, pra conseguir enxergar as prateleiras, é preciso angular a cabeça de um jeito específico, caso contrário você só consegue ver o seu próprio reflexo no vidro. isso tem todo um simbolismo, claro, porque, segundo ela, a maior ameaça ao conhecimento são, justamente, os humanos.
ou seja, se os livros desaparecem, os culpados somos nós.
outra coisa que nunca me saiu da mente? a citação do poeta Heinrich Heine que acompanha a escultura:
“isso foi apenas um prelúdio,
onde se queimam livros,
acaba-se queimando pessoas também.”
a gente não sabe mais pensar?
lembrei da ‘The Empty Library’ por causa de um reels que eu vi no Instagram. a criadora de conteúdo e jornalista Catharina Pinheiro (conhecida como @cathylivros nas redes) criou um vídeo maravilhoso em que explicava, de forma muito didática, como a leitura é um ato político. e ponto final.
“algo que eu percebi logo de cara nas book redes foi um desfalque muito preocupante no sentido de: as pessoas até leem, mas elas não refletem sobre suas leituras e, pior, não refletem sobre o ato da leitura”, ela me disse.
a gente vê a torto e a direito aqueles vídeos de mulheres, principalmente, comentando que leem, 50, 60, até 120 (sim, eu já vi esse vídeo) livros num mês - e por mais que toda e qualquer leitura deva ser celebrada, a gente precisa refletir um pouquinho.
cadê o olhar crítico de quem lê o que lê e por quê?
“isso leva a uma superficialidade no entendimento da literatura, reforçando ideias equivocadas como a de que literatura não tem relação com política ou que velocidade na leitura é mais importante do que compreensão e interpretação.”
quando a Cathy me falou essa frase aí de cima eu fiquei uns três dias em contemplação. porque ela falou disso também - como essa nova forma de se relacionar com a literatura criou uma falta de pudor, como diz a senhora de 80 anos que habita em mim, nos influenciadores.
ninguém mais tem vergonha de incentivar a leitura dinâmica ou dizer publicamente que pula parágrafos de descrição e contexto porque ‘é chato de ler’. até mesmo, aquela história de que a literatura deve ser uma fuga da realidade.
e por mais que a realidade não ande lá essas coisas, eu tenho refletido demais sobre a importância da gente desenvolver o nosso pensamento crítico de muitas formas, incluindo através da leitura. é por isso que comecei a anotar todas as minhas leituras num caderno, pra me dar tempo de construir argumentos sobre o porquê eu gostei ou não de alguma coisa que li.
“não basta conhecer livros, é necessário conhecer o contexto e a importância que os sustentam.”
puxa vida, Cathy. eu entendo e concordo.
num país que perdeu quase sete milhões de leitores nos últimos quatro anos, a gente precisa entender que ler é um privilégio, mas também uma ferramenta política. é a partir da leitura que a gente entra em contato com diferentes ideais e realidades que nos tiram da nossa bolha cotidiana e expandem a nossa visão de mundo.
não é sem motivo que os governos fascistas (como era o nazismo) têm duas características muito conectadas com o conhecimento:
o desprezo aberto por intelectuais e artistas: aqueles que, de certa forma, contrariam ou expressam visões diferentes da defendida pelo governo facista são abertamente hostilizados.
censura e controle da mídia: matérias de jornal, revistas e até reportagens televisivas são censuradas, informações são manipuladas e livros são queimados, proibidos ou tirados de circulação.
quer um exemplo recente, bem fresquinho na nossa história? no verão de 2021, logo antes do começo do ano escolar nos Estados Unidos ainda presidido por Donald Trump, uma lista imensa se livros foram banidos das bibliotecas e do currículo escolar.
entre eles? livros contemporâneos sobre racismo, escravidão, escrito por autores LGBTQIA+, que falam sobre sexualidade na adolescência, trauma e luto, e alguns clássicos como ‘O Conto da Aia’, de Margaret Atwood, e…
‘Fahrenheit 451’, de Ray Bradbury.
incentivando a leitura e a nossa mente pensante
a lista de livros banidos varia de país pra país e de estado pra estado (pelo menos, nos EUA), mas eu acho muito curioso como um livro que fala sobre a importância de livros é banido. porque, no cerne, ‘Fahrenheit 451’ é justamente um livro que demonstra o que acontece numa sociedade extrema onde o conhecimento é motivo de perseguição e a distração é a moeda mais valiosa de um governo.
qualquer semelhança com o mundo atual é mera coincidência.
escolhi esse livro pra primeira leitura conjunta aqui da newsletter porque eu não conseguia parar de pensar no vídeo da Cathy, e sabia que tinha mais a aprender com a história do Bradbury. de fato, tive.
“um livro é uma arma carregada na casa vizinha. queime-o. descarregue a arma. façamos uma brecha no espírito do homem. quem sabe quem poderia ser alvo do homem lido?”
também fui até o chat da newsletter e perguntei pra alguns dos assinantes o que eles pensam sobre o assunto, principalmente os que trabalham no mercado editorial.
“a leitura nos permite acessar novas realidades e pontos de vista, bem como rever nossa própria realidade. quando lemos um suposto romance água com açúcar, mas que na verdade fala sobre uma mulher que foi atrás de um sonho e para isso teve que cortar a relação com familiares, o foco pode até estar no cara gostoso por quem ela se apaixonou, mas nosso cérebro capta mais", disse
, comunicadora e editora (e membro da comunidade mar aberto ❤️).pensa nisso comigo por um instante. todo o livro, não importa a temática, é reflexo de um recorte sócio-cultural. ‘Orgulho e Preconceito’ é um dos meus livros favoritos e um retrato perfeito dos valores tão importantes pra sociedade dos anos 1800.
é um livro de romance? sim. Sr. Darcy é o homem que todas queremos? também. porém, é uma crítica social absurda - afinal, Lizzie Bennet se recusa ao casamento arranjado e com base nos famosos “dotes” (as quantias em dinheiro que eram pagas ao pretendente). ela era uma mulher totalmente fora da curva, assim como a própria autora, que além de se tornar escritora não se casou nem teve filhos.
pra época, um escândalo. pra gente, uma inspiração, porque essas questões ainda são relevantes hoje. e é isso que torna esse livro um clássico.
“o consumo é outro aspecto muito político junto que acompanha as escolhas de leitura. quem escolhemos apoiar? pra quem damos nosso dinheiro? que tipo de projetos financiamos e quem tá por trás deles? quem escolhemos pra falar de literatura? é uma questão muito complexa em um sistema em que a gente depende de certos mecanismos que são controlados por pessoas com inclinações políticas desprezíveis, mas nossas escolhas de leitura e de consumo de livros, conscientes ou não, têm influencia nessa cadeia toda”. a Marina Dummer (
) , que é mestranda em Literatura, tradutora, revisora e preparadora de textos (além de uma inscrita maravilhosa da newsletter) levanta outro ponto bem importante.aqui, fica fácil demais levantar exemplos, né? a autora da história do bruxo mais famoso da contemporaneidade é um prato cheio pra essa discussão. compre seus livros ou produtos licenciados da marca e você está ativamente financiando causas e políticas que colocam pessoas transgênero em risco.
mais recente, o criador de Coraline se revelou um verdadeiro predador sexual e, da mesma maneira, consumir os seus livros (e até as séries e filmes inspirados nas suas criações), é financiá-lo.
eu vou ser sincera com você: eu entendo que é difícil ser consciente no mundo de hoje. diz um dos personagens mais icônicos do universo DC, o vilão Duas Caras, que ‘ou você morre herói ou vive o suficiente pra se tornar o vilão'. e, aqui, eu sinto que o pensamento crítico é ainda mais importante: afinal, a gente precisa escolher as batalhas que quer lutar e quais, infelizmente, vamos passar um pano em nome da nossa saúde mental e bem-estar. eu faço isso, você faz isso, todo mundo faz isso.
mas o senso crítico precisa estar afiado pra isso acontecer, entende?
e, pra reforçar esse ponto, trago a fala perfeita do
, que é jornalista, agitador literário e o terceiro membro da comunidade mar aberto a colaborar com esse texto gigante (porém necessário):“ler é uma das melhores maneiras de organizar os nós em nossa mente, ganhar consciência dos males coletivos e de como podemos enfrentá-los. os autores contemporâneos parecem que entenderam o seguinte: não basta apenas imaginar futuros utópicos ou mundos distantes, também é preciso encarar de frente os absurdos do presente.”
como ler melhor (e de forma mais política)
a leitura não é um hobby, diz a Cathy, e eu concordo. por mais que eu passe mais horas lendo do que fazendo qualquer outra coisa, tenho consciência que ao mesmo tempo que os livros me removem de uma realidade sofrida e que tá beirando a distopia, eles também me estimulam a pensar mais e melhor sobre as brigas que eu quero comprar enquanto ser humano.
“eu acredito que para incentivar mais a leitura, nós, que trabalhamos com internet, leitura e escrita, precisamos ir além de simplesmente recomendar livros: é essencial promover uma cultura de reflexão sobre a leitura e sobre o próprio ato de ler", disse ela.
esse, acredito eu, é um bom ponto pra gente começar esse papo. como, gancho, te faço uma pergunta bem sincera:
o que você gostou e desgostou no último livro que leu? por quê?
uma queixa comum, segundo as minhas pesquisas, é o quanto as pessoas perderam a capacidade de argumentar sobre uma leitura. é aquela típica história de falar mal pelo hype, sem saber muito bem porquê.
sabe hater de Taylor Swift? então.
por isso, questione. o que você gostou nessa leitura? por quê? de que forma o que tava na página se relaciona com os seus valores? onde você concorda e discorda da trajetória dos personagens? e quem é a pessoa por trás do livro? o que ela defende, como se posiciona, do que fala?
se você não gostou do livro, por quê? esse livro te gerou algum desconforto? foi contra os seus valores? de que forma?
e, aqui, eu acho muito, muito, muito importante a gente lembrar que ler obras de autores que pensam diferente (às vezes, até de forma oposta) não significa que você é obrigada a pensar da mesma maneira. pelo contrário, talvez isso te dê mais ‘corpo’ pra argumentar de forma racional e compreensiva porque esse tipo de ideal não te representa.
e, falando em representação, pelo amor de tudo o que é mais sagrado, lembra de colocar diversidade na sua própria lista de leitura. leia autores negros, asiáticos, latinos, árabes. nacionais e estrangeiros, autores LGBTQIA+. adicionar diversidade na sua lista de leitura significa que você vai se tornar uma pessoa mais empática (e politizada) com o tempo.
os livros norte-americanos de romance podem ser uma delícia de ler. mas fazem sucesso por um motivo. eles seguem uma fórmula de conteúdo de massa desenvolvido pra gerar lucro - um dos motivos pelos quais a velocidade de lançamento é mais importante do que a qualidade do texto publicado. a escolha por ler majoritariamente esse tipo de conteúdo também política.
(de alienação, sinto informar.)
pra resumir, se você precisa de um passo a passo pra entender como ler melhor, vale pensar em qualidade ao invés de quantidade e tomar nota disso aqui:
pense na leitura como um exercício pro seu cérebro: você tá aprendendo sobre valores, ideais e visões de mundo diferentes, mesmo que o livro seja um romance.
faça anotações: seja no livro mesmo ou criando um reading journal, exercite o seu pensamento crítico e argumente (mesmo que com você mesma) os porquês por trás dessa leitura.
se for pra falar sobre livros, fale com consciência: não pare no ‘leia porque é muito bom’. que tal explicar um pouco mais, dar mais contexto pra quem te acompanha?
leia gêneros diferentes: eu não gosto de thrillers e horror porque sou altamente impressionável, mas quando percebo que tô muito colada num mesmo assunto, vou atrás de coisas novas e diferentes pra ler. falando nisso…
peça indicações: seja pelas redes ou no seu círculo, as pessoas ao seu redor com certeza podem te indicar livros que vão sair do que você conhece.
e, não, ler não precisa virar uma coisa chata só porque é um ato político (porque é, só pra reforçar). mas considerando que a gente tá cansada de tanta informação, fake news e excesso de baboseira, acho que vale olhar pra um hábito tão valioso pra gente com mais carinho, né?
“precisamos transformar o ato de ler em algo mais do que uma simples contagem de livros lidos no ano; devemos mostrar que a leitura é um processo de aprendizado contínuo, que nos ajuda a interpretar o mundo e a questionar as estruturas ao nosso redor. se queremos realmente incentivar a leitura, temos que incentivar a leitura com significado.”
de novo: puxa, Cathy.
tá falado.
baú de referências
referências, conteúdos e links legais pra gente aprofundar a conversa.
um livro: ‘O Conto de Aia’*, de Margaret Atwood. citei ele lá pra cima, mas vale botar aqui de novo. esse livro é um clássico e merece ser lido pela previsão do futuro assustadora que pode ser. não é à toa que a Margaret disse que, nos Estados Unidos, a pergunta que ela mais escuta é ‘quanto tempo a gente tem antes disso virar realidade?’.
mais um livro: ‘Laranja Mecânica’*, Anthony Burgess. pensa num livro difícil de ler. não só pela temática, mas também pela linguagem. pra você ter uma ideia, o autor criou todo um glossário de gírias muito específicas pros seus personagens. ainda assim, é o tipo de leitura difícil que vale ser feita, porque esse livro aborda técnicas governamentais de manipulação de influência pra ‘curar’ indivíduos considerados ‘problemáticos’. a adaptação pro cinema, dirigida por Stanley Kubrick, é ainda mais difícil de ver (é um filme pesado), porém muito boa.
um filme: ‘Ainda Estou Aqui’. meu deus, sabe. esse filme. esse filme. apesar de não falar diretamente sobre livros e literatura, demonstra muito bem como o governo militar brasileiro manipulava as informações na época da ditadura. quem é jornalista (como eu) sabe: um dos pontos mais doloridos que a gente estuda na faculdade é como matérias contra o governo eram substituídas por receitas de bolo na hora do jornal ir pra impressão. sim, é isso mesmo.
mais um filme: ‘The Post: A Guerra Secreta’. esse definitivamente me fez gritar ‘meu deus eu amo o jornalismo!!!!!’ depois de assistir. ele relata a história (real) de como o jornal The Washington Post arriscou tudo pra publicar os chamados ‘Pentagon Papers', uma série de documentos que expunham os horrores que o governo estadunidense promoveu pra participar na Guerra do Vietnã, na década de 1960.
*links de afiliados.
esse mês, na newsletter mar aberto
bora de agenda com os temas do mês?
13/02: editoria ‘caneta nervosa’ → como usar elementos do seu universo pra escrever melhor
16/02: bônus → ‘diário de escrita #01’: como eu tô planejando o meu livro.
20/02: editoria ‘manual da criadora’ → tornando dias sem planos em experiências intencionais
27/02: editoria ‘produtiva, sim. perfeita, não’ → andar no seu ritmo não significa parar de andar
na leitura (voluntariamente) conjunta do mês, temos ‘siga em frente’, do Austin Kleon. todos os demais posts do mês e a leitura coletiva fazem parte da assinatura mensal (ou anual) da newsletter. clica aqui se você quiser saber mais.
esse texto levou um mês pra ficar pronto. entre pesquisas, conversas e entrevistas, passei um mês inteiro pensando sobre o assunto. se você chegou até aqui, o meu muito obrigada! e, se eu puder ser meio descarada, posso pedir um favor? compartilha ele com a sua rede também, tenho certeza que vai ser benéfico pra muita gente:
é isso por hoje.
se cuida e fica bem,
maki.
Já fui booktuber, então entendo bem quando você fala sobre as pessoas que leem 50, 60, até 120 livros por mês. Esse texto ressoou profundamente em mim, porque voltei a ler recentemente - depois de uma pausa de uns 7 anos (até escrevi sobre isso por aqui). Até li uma coisinha aqui e ali nesse período, mas nunca era mais intencional e ficava muito associado a ideia de “preciso ler mais livros por mês, em uma velocidade maior”. Talvez o efeito booktube!? De qualquer forma, no final do ano passado eu peguei 1984 pra ler de forma *muito* intencional, o livro realmente penetrou na minha cabeça, refleti demais e na sequência li mais um livro, depois outro e decidi passar a escrever aqui. O que quero dizer, acho, é que entendo perfeitamente quando você traz que toda leitura é um ato político. É mesmo. Obrigado por reforçar isso e parabéns pelo texto!
Texto super poderoso, já compartilhei.
Tento passar pra minha filha toda essa ideia da leitura ser algo mais político que estético. Apesar dela ter somente 8 anos e já lê sozinha. Acho super importante a leitura com atitude.